Escola
e tecnologia: uma conversa
Alberto Tornaghi1
Tecnologia,
sociedade e educação
Texto extraído de SALTO PARA O FUTURO
/ TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO
Escola faz tecnologia faz escola –
Programa 1
1.Introdução
“As coisas tinham
para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do
quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um
truque pra fabricar brinquedos com palavras.”
Manoel de Barros,
em Livro sobre nada.
Este texto abre a série “Escola faz
tecnologia faz escola...” criada para o programa Salto para o Futuro, da TV
Escola. O que se propõe aqui é refletir sobre como tecnologia e escola se
modificam mutuamente, quais os diálogos possíveis entre estes seres, ambos
produtos do trabalho humano, ambos produções sócio-técnicas.
Aproveitando Manoel de Barros,
propomos nos apoiarmos em nosso “dessaber” , em nossos “dessaberes” , para
inventar brinquedos novos: com palavras, textos, imagens, sons etc. É
riquíssimo todo “dessaber” que nos permite aprender. E o que mais
queremos da escola?
O que é uma escola? São seus muros?
Suas salas? Seus professores e alunos? Os funcionários? Nada disso é uma
escola. Tudo isso junto talvez forme uma escola. Tudo isso e muito mais:
livros, cadernos, conhecimento, ignorância, curiosidade, parcerias... Propomos
pensar a escola, cada escola, como um local onde se corporificam relações de
ensino e processos de aprendizagem.
E o que a tecnologia traz para a
escola? Traz outras formas de aprender e outras coisas a aprender.
Comecemos, então.
2. Escola e tecnologia: quem faz o quê?
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás,
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
«Caminante no hay camino,
se hace camino al andar»
CANTARES - Antonio Machado e J. M. Serrat.
Freqüentemente, quando se fala em
tecnologia na educação, logo pensamos em computadores, Internet... Mas isso é
pouco, é reduzir muito o gênio da criação humana. Tecnologia é mais do que
isso. Há tecnologia em cada lápis que usamos, no quadro de giz, nos livros, nas
cadeiras em que sentamos. Veja só a revolução social que representou a
imprensa. Podemos imaginar uma escola, hoje, sem livros, sem material
impresso?
O trabalho na escola lida o tempo
todo com tecnologia, mas raramente se ocupa de produzi-la. O que as tecnologias
digitais nos trazem de especial é a ampliação das possibilidades de produzir
conhecimento e divulgá-lo, compartilhá-lo.
Celestin Freinet, já na primeira
metade do século passado, na França, produzia livros e jornais com seus
alunos. O que as chamadas Escolas Freinet fizeram foi propiciar o
ambiente e prover a infra-estrutura para que isso fosse possível. Mas
isso veio à escola como conseqüência de um projeto pedagógico centrado na
produção e na vivência dos alunos. Havia em cada escola uma máquina
tipográfica. No princípio não foi a tipografia que se impôs à escola, foi o
projeto pedagógico que a buscou. Foi a necessidade de publicar os textos
produzidos pelos alunos, o desejo de compartilhá-los com outras escolas que
levou a tipografia para a escola onde lecionava Freinet. Esta passa a ser uma
escola cujo trabalho produz livros e material didático. Os alunos produzem
fichas e problemas que são impressos, publicados, divulgados, compartilhados...
A tipografia era operada pelos alunos que aprenderam a usá-la e a adaptaram
para que pudesse ser manuseada pelos pequenos. A tipografia mudou a escola e a
escola mudou a máquina tipográfica (Sampaio, 1989).
A escola faz tecnologia e a
tecnologia faz a escola.
Nem só de franceses ousados vivem os
projetos de escola que produzem e publicam novos conhecimentos e formas de
tratá-los. O projeto Amora (http://amora.cap.ufrgs.br/)2 desenvolvido no
Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – CAP-UFRGS
trabalha a partir da perspectiva de projetos de aprendizagem e lá estudantes e
professores estudam, aprendem em parceria e publicam seus processos e seus
resultados na Internet.
Alunos do CAP-UFRGS escolhem os temas
que pretendem estudar, se organizam em grupos, pesquisam e têm o compromisso de
comunicar aos colegas e publicar suas descobertas de forma a que outros possam
aprender com sua produção. A jornalista Cássia Borsero assim descreve o que viu
por lá:
“Sob a orientação de um professor,
sozinhos ou em pequenos grupos, eles então buscam em diversas fontes
(bibliotecas, entrevistas com especialistas, etc.) e também na Internet as
informações para escreverem seus trabalhos. A diferença é que os trabalhos
escolares não ficam empoeirando em gavetas, mas se transformam em websites, que
os alunos criam e desenvolvem. A publicação é feita pelos próprios alunos em um
ambiente virtual criado especialmente para os projetos de investigação.”
A Profª Léa Fagundes diz o seguinte
em entrevista ao Midiativa3:
“Os resultados do AMORA serviam como
referência tanto para a metodologia de uso da Internet quanto para as novas
definições das funções dos professores e as produções dos alunos. Nele
delineamos uma metodologia social – a metodologia dos Projetos de
Aprendizagem.”
É, portanto, um projeto de escola que
produz e usa tecnologia para produzir e modificar propostas metodológicas. É um
projeto de escola em que alunos e professores produzem novos conhecimentos e os
compartilham usando, para isso, a tecnologia a que têm acesso.
A escola faz tecnologia e a
tecnologia faz a escola.
3.Tecnologia vai à escola
“Cesse tudo que a antiga musa canta,
que outro valor mais alto se
alevanta.”
Os Lusíadas - Luís de Camões.
“Outro valor”? Mais apropriado
seria dizer “outros”. “Mais alto”? Visto de onde? Melhor
pensar em “também alto”, útil e de “grande valor”. Ficaríamos então com: “Que
nada cesse da antiga musa, posto que é musa e tem valor. Mas que se
atente que outros valores, também altos, se alevantam”. O que trazemos
não é uma nova verdade, que a tudo abafa, panacéia da gestão e da educação; é
apenas mais um aliado ou, melhor ainda, mais alguns aliados.
As chamadas Tecnologias de
Comunicação e Informação (TCI) não podem ser tratadas como mais uma disciplina
da “grade curricular”4 . É imperioso que a escola (educadores, alunos,
pais, gestores...) as percebam como meios que trazem para o universo cultural
novas formas de expressão, de representação e comunicação do conhecimento e
implicam novas relações com a leitura e com a escrita. As TCI implicam
também novas formas de produção em todas as áreas do conhecimento.
Escrever e ler hipertextos são
ações intelectuais que têm implicações cognitivas muito diversas da leitura de
textos lineares. É uma representação em rede, rizomática como definiu Deleuze
[1997]. O mesmo se pode dizer do uso de simuladores ou de ambientes de
experimentação matemática como o Logo [Papert, 1992] e o Tabulae [Soares,
2003].
A apropriação dessas tecnologias
implica, mais do que aprendizagem, convívio e uso cotidiano. São
ambientes em permanente e rápido processo de crescimento. Sua apreensão e
a compreensão dos novos horizontes que se abrem ao processo educacional
dependem mais de uso corrente do que de aprendizado stricto sensu.
A professora Silva fala do
Ciberespaço como um “ambiente que é marcado por uma não-espacialidade.” Ora,
como compreender um tal espaço exclusivamente com referências do mundo
tridimensional pré-computacional?
A incorporação das TCI nos processos
educacionais escolares exige um processo vivencial e permanente de formação dos
agentes responsáveis. A busca desta incorporação está determinando a
criação de produtos que permitam novas formas de produção na escola.
A escola faz tecnologia e a
tecnologia faz a escola.
O que se pode fazer de novo: alguns
exemplos
Os microcomputadores trazem para a
escola imensa gama de possibilidades de produção. Algumas formas de
expressão que eram antes muito trabalhosas ou que implicavam custos muito altos
estão agora ao alcance das pontas dos dedos, via teclados e mouses.
Seguem alguns exemplos:
Edição de vídeo e de som. O que
antes exigia equipamentos caros e sofisticados e muito tempo vendo, revendo e
rebobinando fitas, hoje pode ser feito em quase qualquer computador, utilizando
editores não lineares de vídeo e de som. Existem editores caríssimos e
sofisticados mas existem também alguns simples que podem ser encontrados
gratuitamente. Para o Sistema operacional Linux pode-se encontrar na rede
alguns produtos livres. Para o sistema Windows não conheço produtos gratuitos
mas o Windows XP já traz um editor de vídeo simples.
Produção de animações. O que antes
exigia horas e horas de desenhos repetidos pode, hoje, ser realizado utilizando
computadores que copiam e repetem desenhos com grande facilidade. Os
programas mais simples e comuns talvez sejam os “animadores de gifs". Gifs
são uma forma de desenhos feitos em computadores. Existem diversos programas
gratuitos tanto para Windows como para Linux.
Mapas conceituais: são um poderoso instrumento
para ajudar professores e alunos a registrarem o que sabem e perceberem o que
não sabem. A maior parte dos programas de mapas conceituais é de uso muito
simples. O que há de sofisticado é o conceito em si: colocar de forma
explícita, no papel ou em computadores, conceitos e conseguir estabelecer as
relações que há entre eles exige que o aprendiz, seja ele aluno ou professor,
aprofunde e busque conhecer mais sobre cada um dos temas que está
tratando. Há muitos artigos na rede discutindo o tema. Na página
http://lead.cap.ufrgs.br/pagina/cmap/ é possível encontrar, escrito em bom e
confortável português, como instalar em seu computador o Cmap, um programa
poderoso e gratuito para criar mapas conceituais.
Este programa está sendo desenvolvido
pelo Institute of Human and Machine Cognition, da Universidade de West Florida
– UWF com contribuição sistemática de educadores e estudantes que o utilizam em
várias partes do mundo.
A escola faz tecnologia e a
tecnologia faz a escola.
Na utilização pelas escolas do
Software Livre (SL), em especial o sistema operacional Linux, talvez seja onde
apareça de forma mais clara e literal a possibilidade de desenvolvimento de
tecnologia na e pela escola. O processo de desenvolvimento deste sistema
operacional, coletivo e público, conta com a participação de usuários e
programadores em todo o mundo, reunindo interesses diversos e variados.
São muitos os ganhos que seu uso traz
para a escola, para cada localidade e para cada comunidade, com foco na
liberdade de adaptação e crescimento, a possibilidade de desenvolvimento de
competência em programação e desenvolvimento de sistemas abrindo novas frentes
profissionais e ampliação de mercado de trabalho. Seu uso e
desenvolvimento trazem como questão central a discussão sobre ética e
construção de caminho próprio e autônomo em consonância com muitos centros de
pesquisa, outros governos nacionais e estrangeiros etc.
A escola faz tecnologia e a
tecnologia faz a escola.
4. E o professor? Como lidar com
isso?
Novos conhecimentos produzidos nas
diferentes áreas batem à porta da escola a cada dia. A velocidade de propagação
e divulgação da produção da humanidade e o volume de informação a que temos
acesso resultaram em um ambiente cultural qualitativamente diverso do que
existia há pouco mais de duas décadas.
Em Tornaghi [2004], as comunidades de
prática de educadores são apresentadas como uma possibilidade de processos de
formação permanente frente a esta realidade.
Já não cabe mais ao professor buscar
ser o detentor do saber que provê a seus alunos toda necessidade de informação
e de formação. Cabe, isso sim, ser um profissional capaz de buscar esta
informação junto com os estudantes, ter competência para avaliar a informação
que encontram e contribuir para que todos, ele e seus alunos, venham a ser cada
dia mais capazes de buscar por si mesmos as informações de que precisam, de
criticá-las e de construir, localizada, temporal e contextualizadamente, os
conhecimentos de que necessitam a cada momento.
Nós, educadores de hoje, precisamos ter
em conta o que afirma Tardif [2000] para podermos, de forma eficaz, promover a
reorientação da história de nossas vidas profissionais que o momento nos impõe.
“Trabalhar não é exclusivamente
transformar um objeto ou situação em uma outra coisa, é também transformar a si
mesmo em e pelo trabalho. Em termos sociológicos, pode-se dizer que o trabalho
modifica a identidade do trabalhador, pois trabalhar não é somente fazer alguma
coisa, mas fazer alguma coisa de si mesmo, consigo mesmo.”
O homem produz conhecimento e o
conhecimento produz o homem.
5. Finalmente...
As distâncias somavam a gente para
menos.
Manoel de Barros, em Livro sobre
Nada.
Gatti [2003] afirma que:
“Mentores e implementadores de
programas ou cursos de formação continuada, que visam a mudanças em cognições e
práticas, têm a concepção de que, oferecendo conteúdos e trabalhando a
racionalidade dos profissionais, produzirão a partir do domínio de novos
conhecimentos mudanças em posturas e formas de agir. Essa concepção é muito
limitada e não corresponde ao que ocorre nesses processos formativos.”
É preciso encarar a escola como uma
construção sócio-técnica [Latour, 1997], um ser heterogêneo, que reúne seres
humanos – professores, alunos, pais, administradores – e não humanos – mesas,
cadeiras, quadros de giz, mimeógrafos e, com sorte, televisão, vídeos,
computadores e Internet. É este ser heterogêneo que produz conhecimento,
que produz a possibilidade de novos conhecimentos que superam limites e criam,
a cada dia, uma nova escola, um novo ensinar e um novo aprender. Não é
cada professor individualmente quem produz novas estratégias de ensino, mas é
também o professor, em rede, inserido no espaço sócio-técnico da escola, em
interação com seus pares, com seus alunos, com máquinas e livros, com os
regulamentos, utilizando cada um dos recursos que o ambiente lhe oferece.
As possibilidades de criação e
experimentação de estratégias para trabalhar com conceitos de ecologia, por
exemplo, serão completamente diversas caso as escolas disponham ou não de
ambiente externo ou em escolas de áreas rurais e de áreas urbanas. O
entorno da escola, assim como os seres humanos, ora atua como aliado ora como opositor,
ou discordante, nos termos de Latour. Da mesma forma, as regras que regem a
escola contribuem ou se opõem às propostas de inovação pedagógica: de nada
adianta um belo jardim se os alunos não puderem “pisar na grama”, se dar aulas
fora da sala de aula for um impedimento regimental. O regimento é tão atuante
quanto professores e direção: precisam todos ser formados permanentemente.
Quem precisa de formação não é o
educador individualmente mas a escola, o ser heterogêneo e complexo descrito
acima. É a escola como um todo o ser que tem a função formativa. A
escola precisa se formar para ser capaz de formar seus alunos. Formar
alunos para os dias de hoje.
Apresenta-se ao professor o
conceito de “par mais capaz”, mas pouco se investe para que o próprio, em
contato com pares, seja capaz de ativar sua zona de desenvolvimento proximal
[Vygotsky]. Despreza-se a experiência de aprendiz do professor, deixando
de convidá-lo a refletir e registrar a vivência mesma durante os cursos de que
participa.
Aprendíamos, já lá se vão alguns
anos, que êle deveria ser grafado com acento circunflexo para diferenciá-lo de
ele, o nome da letra. Nossa língua maravilhosamente viva superou nossos erros
de ortografia e transformou o erro de então na verdade consagrada de hoje,
conquista dos “errados” de então que fizeram o uso mais forte do que a norma
culta.
É neste mundo que vivemos, mundo em
que o conhecimento é vivo, evolui. A escola não pode permanecer a ensinar
verdades cristalizadas. Ela precisa assumir que produz verdades. Que
produza novas.
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BORSERO, Cássia. “Projeto Amora: sintonia com a era da informação”.
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como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp,
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SAMPAIO, Rosa Maria Whitaker F. Freinet: Evolução histórica e
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SOARES, A. B., ALVES, G. S. Geometria Dinâmica: um estudo de seus
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VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem.
1 Assessor pedagógico do Departamento de Informática Educativa - Colégio
Santo Inácio, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisador da COPPE - UFRJ - Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
2 Se o endereço não funcionar como está no texto,
coloque ao final dele o ano corrente como, por exemplo, http://amora.cap.ufrgs.br/2004.
3 Entrevista disponível em
http://www.midiativa.tv/index.php/educadores/content/view/full/1053/.
4 "Grade curricular", uma prisão que define
de forma aparentemente unívoca e inegavelmente falsa o que cada participante
terá experimentado e apreendido se cumprir satisfatoriamente o que foi
programado.
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