terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Escola e tecnologia: uma conversa
 Alberto Tornaghi1
Tecnologia, sociedade e educação
Texto extraído de SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO
Escola faz tecnologia faz escola – Programa 1

1.Introdução
“As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.”
Manoel de Barros, em Livro sobre nada.
Este texto abre a série “Escola faz tecnologia faz escola...” criada para o programa Salto para o Futuro, da TV Escola.  O que se propõe aqui é refletir sobre como tecnologia e escola se modificam mutuamente, quais os diálogos possíveis entre estes seres, ambos produtos do trabalho humano, ambos produções sócio-técnicas.
Aproveitando Manoel de Barros, propomos nos apoiarmos em nosso “dessaber” , em nossos “dessaberes” , para inventar brinquedos novos: com palavras, textos, imagens, sons etc.  É riquíssimo todo “dessaber”  que nos permite aprender.  E o que mais queremos da escola?
O que é uma escola? São seus muros? Suas salas? Seus professores e alunos? Os funcionários? Nada disso é uma escola. Tudo isso junto talvez forme uma escola. Tudo isso e muito mais: livros, cadernos, conhecimento, ignorância, curiosidade, parcerias... Propomos pensar a escola, cada escola, como um local onde se corporificam relações de ensino e processos de aprendizagem.
E o que a tecnologia traz para a escola?  Traz outras formas de aprender e outras coisas a aprender. 
Mas... e o que é tecnologia?  Onde há tecnologia?  
Comecemos, então.
2. Escola e tecnologia: quem faz o quê?
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás,
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
«Caminante no hay camino,
se hace camino al andar»
CANTARES - Antonio Machado e J. M. Serrat.

Freqüentemente, quando se fala em tecnologia na educação, logo pensamos em computadores, Internet... Mas isso é pouco, é reduzir muito o gênio da criação humana. Tecnologia é mais do que isso. Há tecnologia em cada lápis que usamos, no quadro de giz, nos livros, nas cadeiras em que sentamos. Veja só a revolução social que representou a imprensa. Podemos imaginar uma escola, hoje, sem livros, sem material impresso? 
O trabalho na escola lida o tempo todo com tecnologia, mas raramente se ocupa de produzi-la. O que as tecnologias digitais nos trazem de especial é a ampliação das possibilidades de produzir conhecimento e divulgá-lo, compartilhá-lo.

Celestin Freinet, já na primeira metade do século passado, na França, produzia livros e jornais com seus alunos.  O que as chamadas Escolas Freinet fizeram foi propiciar o ambiente e prover a infra-estrutura para que isso fosse possível.  Mas isso veio à escola como conseqüência de um projeto pedagógico centrado na produção e na vivência dos alunos.  Havia em cada escola uma máquina tipográfica. No princípio não foi a tipografia que se impôs à escola, foi o projeto pedagógico que a buscou. Foi a necessidade de publicar os textos produzidos pelos alunos, o desejo de compartilhá-los com outras escolas que levou a tipografia para a escola onde lecionava Freinet. Esta passa a ser uma escola cujo trabalho produz livros e material didático. Os alunos produzem fichas e problemas que são impressos, publicados, divulgados, compartilhados... A tipografia era operada pelos alunos que aprenderam a usá-la e a adaptaram para que pudesse ser manuseada pelos pequenos. A tipografia mudou a escola e a escola mudou a máquina tipográfica (Sampaio, 1989). 
A escola faz tecnologia e a tecnologia faz a escola.
Nem só de franceses ousados vivem os projetos de escola que produzem e publicam novos conhecimentos e formas de tratá-los. O projeto Amora (http://amora.cap.ufrgs.br/)2 desenvolvido no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – CAP-UFRGS trabalha a partir da perspectiva de projetos de aprendizagem e lá estudantes e professores estudam, aprendem em parceria e publicam seus processos e seus resultados na Internet. 
Alunos do CAP-UFRGS escolhem os temas que pretendem estudar, se organizam em grupos, pesquisam e têm o compromisso de comunicar aos colegas e publicar suas descobertas de forma a que outros possam aprender com sua produção. A jornalista Cássia Borsero assim descreve o que viu por lá:
“Sob a orientação de um professor, sozinhos ou em pequenos grupos, eles então buscam em diversas fontes (bibliotecas, entrevistas com especialistas, etc.) e também na Internet as informações para escreverem seus trabalhos. A diferença é que os trabalhos escolares não ficam empoeirando em gavetas, mas se transformam em websites, que os alunos criam e desenvolvem. A publicação é feita pelos próprios alunos em um ambiente virtual criado especialmente para os projetos de investigação.”
A Profª Léa Fagundes diz o seguinte em entrevista ao Midiativa3:
“Os resultados do AMORA serviam como referência tanto para a metodologia de uso da Internet quanto para as novas definições das funções dos professores e as produções dos alunos. Nele delineamos uma metodologia social – a metodologia dos Projetos de Aprendizagem.”
É, portanto, um projeto de escola que produz e usa tecnologia para produzir e modificar propostas metodológicas. É um projeto de escola em que alunos e professores produzem novos conhecimentos e os compartilham usando, para isso, a tecnologia a que têm acesso.
A escola faz tecnologia e a tecnologia faz a escola.
3.Tecnologia vai à escola
“Cesse tudo que a antiga musa canta,
que outro valor mais alto se alevanta.”
Os Lusíadas - Luís de Camões.
“Outro valor”?  Mais apropriado seria dizer “outros”.  “Mais alto”?  Visto de onde?  Melhor pensar em “também alto”, útil e de “grande valor”. Ficaríamos então com: “Que nada cesse da antiga musa, posto que é musa e tem valor.  Mas que se atente que outros valores, também altos, se alevantam”.  O que trazemos não é uma nova verdade, que a tudo abafa, panacéia da gestão e da educação; é apenas mais um aliado ou, melhor ainda, mais alguns aliados.
As chamadas Tecnologias de Comunicação e Informação (TCI) não podem ser tratadas como mais uma disciplina da “grade curricular”4 . É  imperioso que a escola (educadores, alunos, pais, gestores...) as percebam como meios que trazem para o universo cultural novas formas de expressão, de representação e comunicação do conhecimento e implicam novas relações com a leitura e com a escrita.  As TCI implicam também novas formas de produção em todas as áreas do conhecimento.
Escrever e ler hipertextos são  ações intelectuais que têm implicações cognitivas muito diversas da leitura de textos lineares. É uma representação em rede, rizomática como definiu Deleuze [1997]. O mesmo se pode dizer do uso de simuladores ou de ambientes de experimentação matemática como o Logo [Papert, 1992] e o Tabulae [Soares, 2003].
A apropriação dessas tecnologias implica, mais do que aprendizagem, convívio e uso cotidiano.  São ambientes em permanente e rápido processo de crescimento.  Sua apreensão e a compreensão dos novos horizontes que se abrem ao processo educacional dependem mais de uso corrente do que de aprendizado stricto sensu. 
A professora Silva fala do Ciberespaço como um “ambiente que é marcado por uma não-espacialidade.” Ora, como compreender um tal espaço exclusivamente com referências do mundo tridimensional pré-computacional? 
A incorporação das TCI nos processos educacionais escolares exige um processo vivencial e permanente de formação dos agentes responsáveis.  A busca desta incorporação está determinando a criação de produtos que permitam novas formas de produção na escola.
A escola faz tecnologia e a tecnologia faz a escola.
O que se pode fazer de novo: alguns exemplos
Os microcomputadores trazem para a escola imensa gama de possibilidades de produção.  Algumas formas de expressão que eram antes muito trabalhosas ou que implicavam custos muito altos estão agora ao alcance das pontas dos dedos, via teclados e mouses.
Seguem alguns exemplos:
Edição de vídeo e de som.  O que antes exigia equipamentos caros e sofisticados e muito tempo vendo, revendo e rebobinando fitas, hoje pode ser feito em quase qualquer computador, utilizando editores não lineares de vídeo e de som.  Existem editores caríssimos e sofisticados mas existem também alguns simples que podem ser encontrados gratuitamente. Para o Sistema operacional Linux pode-se encontrar na rede alguns produtos livres. Para o sistema Windows não conheço produtos gratuitos mas o Windows XP já traz um editor de vídeo simples.
Produção de animações. O que antes exigia horas e horas de desenhos repetidos pode, hoje, ser realizado utilizando computadores que copiam e repetem desenhos com grande facilidade.  Os programas mais simples e comuns talvez sejam os “animadores de gifs". Gifs são uma forma de desenhos feitos em computadores. Existem diversos programas gratuitos tanto para Windows como para Linux.
Mapas conceituais: são um poderoso instrumento para ajudar professores e alunos a registrarem o que sabem e perceberem o que não sabem. A maior parte dos programas de mapas conceituais é de uso muito simples. O que há de sofisticado é o conceito em si: colocar de forma explícita, no papel ou em computadores, conceitos e conseguir estabelecer as relações que há entre eles exige que o aprendiz, seja ele aluno ou professor, aprofunde e busque conhecer mais sobre cada um dos temas que está tratando.  Há muitos artigos na rede discutindo o tema. Na página http://lead.cap.ufrgs.br/pagina/cmap/ é possível encontrar, escrito em bom e confortável português, como instalar em seu computador o Cmap, um programa poderoso e gratuito para criar mapas conceituais.
Este programa está sendo desenvolvido pelo Institute of Human and Machine Cognition, da Universidade de West Florida – UWF com contribuição sistemática de educadores e estudantes que o utilizam em várias partes do mundo.
A escola faz tecnologia e a tecnologia faz a escola.
Na utilização pelas escolas do Software Livre (SL), em especial o sistema operacional Linux, talvez seja onde apareça de forma mais clara e literal a possibilidade de desenvolvimento de tecnologia na e pela escola. O processo de desenvolvimento deste sistema operacional, coletivo e público, conta com a participação de usuários e programadores em todo o mundo, reunindo interesses diversos e variados. 
São muitos os ganhos que seu uso traz para a escola, para cada localidade e para cada comunidade, com foco na liberdade de adaptação e crescimento, a possibilidade de desenvolvimento de competência em programação e desenvolvimento de sistemas abrindo novas frentes profissionais e ampliação de mercado de trabalho.  Seu uso e desenvolvimento trazem como questão central a discussão sobre ética e construção de caminho próprio e autônomo em consonância com muitos centros de pesquisa, outros governos nacionais e estrangeiros etc. 
A escola faz tecnologia e a tecnologia faz a escola.
4. E o professor? Como lidar com isso?
Novos conhecimentos produzidos nas diferentes áreas batem à porta da escola a cada dia. A velocidade de propagação e divulgação da produção da humanidade e o volume de informação a que temos acesso resultaram em um ambiente cultural qualitativamente diverso do que existia há pouco mais de duas décadas.
Em Tornaghi [2004], as comunidades de prática de educadores são apresentadas como uma possibilidade de processos de formação permanente frente a esta realidade.
Já não cabe mais ao professor buscar ser o detentor do saber que provê a seus alunos toda necessidade de informação e de formação. Cabe, isso sim, ser um profissional capaz de buscar esta informação junto com os estudantes, ter competência para avaliar a informação que encontram e contribuir para que todos, ele e seus alunos, venham a ser cada dia mais capazes de buscar por si mesmos as informações de que precisam, de criticá-las e de construir, localizada, temporal e contextualizadamente, os conhecimentos de que necessitam a cada momento.
Nós, educadores de hoje, precisamos ter em conta o que afirma Tardif [2000] para podermos, de forma eficaz, promover a reorientação da história de nossas vidas profissionais que o momento nos impõe.
“Trabalhar não é exclusivamente transformar um objeto ou situação em uma outra coisa, é também transformar a si mesmo em e pelo trabalho. Em termos sociológicos, pode-se dizer que o trabalho modifica a identidade do trabalhador, pois trabalhar não é somente fazer alguma coisa, mas fazer alguma coisa de si mesmo, consigo mesmo.”
O homem produz conhecimento e o conhecimento produz o homem.
5. Finalmente...
As distâncias somavam a gente para menos.
Manoel de Barros, em Livro sobre Nada.
Gatti [2003] afirma que:
“Mentores e implementadores de programas ou cursos de formação continuada, que visam a mudanças em cognições e práticas, têm a concepção de que, oferecendo conteúdos e trabalhando a racionalidade dos profissionais, produzirão a partir do domínio de novos conhecimentos mudanças em posturas e formas de agir. Essa concepção é muito limitada e não corresponde ao que ocorre nesses processos formativos.”
É preciso encarar a escola como uma construção sócio-técnica [Latour, 1997], um ser heterogêneo, que reúne seres humanos – professores, alunos, pais, administradores – e não humanos – mesas, cadeiras, quadros de giz, mimeógrafos e, com sorte, televisão, vídeos, computadores e Internet.  É este ser heterogêneo que produz conhecimento, que produz a possibilidade de novos conhecimentos que superam limites e criam, a cada dia, uma nova escola, um novo ensinar e um novo aprender.  Não é cada professor individualmente quem produz novas estratégias de ensino, mas é também o professor, em rede, inserido no espaço sócio-técnico da escola, em interação com seus pares, com seus alunos, com máquinas e livros, com os regulamentos, utilizando cada um dos recursos que o ambiente lhe oferece. 
As possibilidades de criação e experimentação de estratégias para trabalhar com conceitos de ecologia, por exemplo, serão completamente diversas caso as escolas  disponham ou não de ambiente externo ou em escolas de áreas rurais e de áreas urbanas.  O entorno da escola, assim como os seres humanos, ora atua como aliado ora como opositor, ou discordante, nos termos de Latour. Da mesma forma, as regras que regem a escola contribuem ou se opõem às propostas de inovação pedagógica: de nada adianta um belo jardim se os alunos não puderem “pisar na grama”, se dar aulas fora da sala de aula for um impedimento regimental. O regimento é tão atuante quanto professores e direção: precisam todos ser formados permanentemente.
Quem precisa de formação não é o educador individualmente mas a escola, o ser heterogêneo e complexo descrito acima.  É a escola como um todo o ser que tem a função formativa.  A escola precisa se formar para ser capaz de formar seus alunos.  Formar alunos para os dias de hoje. 
Apresenta-se ao professor  o conceito de “par mais capaz”, mas pouco se investe para que o próprio, em contato com pares, seja capaz de ativar sua zona de desenvolvimento proximal [Vygotsky].  Despreza-se a experiência de aprendiz do professor, deixando de convidá-lo a refletir e registrar a vivência mesma durante os cursos de que participa.
Aprendíamos, já lá se vão alguns anos, que êle deveria ser grafado com acento circunflexo para diferenciá-lo de ele, o nome da letra. Nossa língua maravilhosamente viva superou nossos erros de ortografia e transformou o erro de então na verdade consagrada de hoje, conquista dos “errados” de então que fizeram o uso mais forte do que a norma culta.
É neste mundo que vivemos, mundo em que o conhecimento é vivo, evolui.  A escola não pode permanecer a ensinar verdades cristalizadas. Ela precisa assumir que produz verdades.  Que produza novas.
Bibliografia
BORSERO, Cássia. “Projeto Amora: sintonia com a era da informação”. Disponível em: http://www.midiativa.tv/index.php/educadores/content/view/full/1050/
DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs. vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1997.
GATTI, Bernardete A. Formação continuada de professores: a questão psicossocial. Cadernos de Pesquisa [online]. (2003), n. 119 [citado 07 junho 2004], p.191-204. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742003000200010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0100-1574.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
PAPERT, S. A Máquina das Crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
SAMPAIO, Rosa Maria Whitaker F. Freinet: Evolução histórica e atualidades. São Paulo, Editora Scipione, 1989. (Coleção Pensamento e Ação no Magistério)
SILVA, M.T.C. A Territorialidade do Ciberespaço. Portal da Educação Pública. Disponível em:
 http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/geografia/geo09a.htm
SOARES, A. B., ALVES, G. S. Geometria Dinâmica: um estudo de seus recursos, potencialidades e limitações através do software Tabulae. XXIII Congresso da Sociedade Brasileira de Computação, São Paulo, Unicamp, 2003. Disponível em:
 http://www.javasoft.com.br/academic/sbc2003/arq0121.pdf
TARDIF, M., RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educ. Soc. [online]. Dez. (2000), vol. 21, n. 73, p. 209-244. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302000000400013&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0101-7330.
TORNAGHI, A., VIVACQUA, A., SOUZA, J. Creating Educator Communities, Proceedings of the IADIS International Conference, Web Based Communities.Lisbon, 2004. p. 123-130.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem.
1 Assessor pedagógico do Departamento de Informática Educativa - Colégio Santo Inácio, Rio de Janeiro, RJ. Pesquisador da COPPE - UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 2   Se o endereço não funcionar como está no texto, coloque ao final dele o ano corrente como, por exemplo, http://amora.cap.ufrgs.br/2004.
 3  Entrevista disponível em
 http://www.midiativa.tv/index.php/educadores/content/view/full/1053/.

 4   "Grade curricular", uma prisão que define de forma aparentemente unívo­ca e inegavelmente falsa o que cada participante terá experimentado e apreendido se cumprir satisfatoriamente o que foi programado.

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